(Texto preparado por ocasião do lançamento do Movimento Humaniza SC em Joinville)

Maria Elisa Máximo*

Antes de tudo, gostaria de agradecer pelo convite para estar aqui hoje e pela oportunidade de dividir esta mesa com tantas pessoas admiráveis sem as quais, sem dúvida alguma, seria muito mais difícil viver em Joinville. Em um tempo em que nos querem tolher até mesmo o direito de criticar ou de desgostar da cidade onde vivemos, poder estar “entre os nossos”, entre aqueles que pensam e atuam na cidade a partir da valorização da igualdade, do respeito à dignidade humana, da justiça social, é muito reconfortante e motivador.

Minha proposta, aqui, é a de fazer um relato pessoal das violências que sofri entre o 1º e o 2º turno das Eleições de 2022, mas com o propósito de alcançar a dimensão coletiva dessa experiência e, a partir dela, vislumbrar, junto com minhas companheiras de mesa, possíveis saídas.

No dia 1º de outubro, fiz um tuíte após ter passado pela mobilização em torno da chegada do Bolsonaro à Joinville. O tuíte foi publicado às 16h25 e, já no início da noite, ele havia “viralizado”, ou seja, alcançado muitos compartilhamentos e um engajamento significativo. No dia seguinte, dia da eleição, acordei recebendo ataques por mensagem privada, todas de pessoas desconhecidas (alguns perfis anônimos, inclusive). Diante disso, eu apaguei o post. Mas, os ataques continuaram.

No início da noite de domingo, colegas de trabalho começaram a me relatar que um print do meu tuíte – editado, fazendo a associação do tuíte com minha filiação institucional e, mais do que isso, dando o viés interpretativo da mensagem (de que eu estava xingando os joinvilenses e ofendendo a população da cidade) – estava circulando no Instagram e no Facebook, sempre marcando a instituição.

Na segunda-feira, dia 3, logo no início da tarde, recebi uma ligação do diretor da faculdade, relatando a repercussão do tuíte e determinando que eu não fosse trabalhar naquela semana. Posteriormente, esse afastamento acabou se justificando por uma recomendação médica, mas já na manhã do dia 4, terça-feira, a Assessoria de Comunicação da instituição fez circular uma nota falando do meu afastamento, primeiro por email, em resposta às famílias que pressionavam pela minha demissão, depois em nota oficial, publicada no site.

Ainda na segunda-feira, vereadores foram à tribuna da Câmara de Vereadores de Joinville (CVJ) “comentar” o meu tuíte, reiterando o viés interpretativo do print que circulava no Instagram e no Facebook, cobrando uma atitude da instituição e, portanto, amplificando a pressão pela minha demissão.

Com tudo isso, a violência contra mim aumentou e ganhou dimensões públicas com uma enxurrada de posts e comentários nas redes sociais, além da viralização pelos grupos de WhatsApp. O que eu vivi foi um verdadeiro linchamento virtual, o que na linguagem das redes se resume, muitas vezes, por “cancelamento”.

É importante destacar que, em meio a esse processo, uma pessoa assumiu publicamente a autoria do print viral. Essa pessoa, à época, ocupava uma assessoria especial da presidência da CVJ e assim escreveu em TODAS as suas redes sociais, no dia 4 de outubro:

“Postei esse print no domingo, no meu story, e ele foi bem compartilhado pela cidade que ficou surpresa e atônita com a postura dessa professora do Ielusc.
Diante da gravidade da situação, que vai muito além desse print, resolvi postá-lo aqui também no feed.
Tem muitos anos que escuto relatos e recebo denúncias reclamando da doutrinação e da pressão marxista que esta senhora faz dentro da instituição!
Eu confesso que não sei o posicionamento da direção do Ielusc, não sei se são negligentes, inocentes ou cúmplices. O que eu sei é que – ao menos alguns cursos – desta instituição se tornaram uma espécie de chocadeira do PSOL em Joinville.
Cabe aos pais exigirem uma postura da instituição e seus representantes. Doutrinação marxista em instituições de ensino é assunto seríssimo! Não adianta esperar pelo Estado. Nossa sociedade precisa de família! Só a família tem poder para reverter quadros deploráveis como esse.
Amém!”

(o post trazia o print de meu tuíte, que o próprio autor editou e divulgou)

Essa pessoa, que prefiro não vou nominar, engajou bastante com esse post e aproveitou a onda para seguir com seus ataques pelos próximos 10 dias até a efetivação da minha demissão e a mobilização bolsonarista organizada em frente à faculdade no dia 19 de outubro, em apoio à decisão da instituição. Nesses posts, que continuam publicados e, portanto, acessíveis a qualquer pessoa, ele me acusa de “professora militante”, “doutrinadora marxista”, “radical marxista” e afirma levianamente, nos comentários aos seus posts, que eu perseguia e até coagia jovens por anos, com a conivência da direção da instituição.

O resto da história é bem conhecido na cidade: a mídia reverberou muito o caso, eu recebi muito apoio, mas os apoios não foram capazes de cessarem os ataques. Muito pelo contrário! No dia 18 de outubro, dia em que venceu meu atestado médico, eu fui demitida sem justa causa, não sem antes ter algumas conversas telefônicas e presenciais com a direção e tentar, sempre de forma escrita, advogar em favor da manutenção de meu vínculo institucional. Houve um grande protesto dos estudantes contra minha demissão, que foi imediatamente envolvido em uma espiral de fake news. No dia seguinte à demissão, dia 19 de outubro, a rua Princesa Isabel, no centro de Joinville, foi tomada por uma manifestação tipicamente bolsonarista – com todos os símbolos que caracterizam essas mobilizações de ultra-direita  como bandeiras verde-amarela, camisas da seleção brasileira, hino nacional, pai-nosso e falas efusivas – em apoio a instituição, deixando claro a quem a instituição havia respondido com sua decisão e, mais do que isso, como a própria instituição estava se posicionando nesse espectro político.

Em resumo: o que eu vivi foi violência política, sim, disparada não pelo meu tuíte, mas por uma ação organizada, quase de “guerrilha”, por milícias digitais e com a participação de agentes públicos, vereadores e assessores. E como decorrência dessa violência política, eu vivi uma série de violências institucionais na condição de trabalhadora/empregada de uma empresa que ao me demitir, e com isso legitimar as acusações que me imputaram, alçando-as ao estatuto de “verdade”, colocou em risco, inclusive, as possibilidades da minha recolocação profissional aqui em Joinville. Afinal, não nos cabe a ingenuidade de cogitamos que numa cidade em que vereadoras de esquerda sofrem ameaças, comerciantes/empresários de esquerda sofrem boicote, professoras/es têm suas aulas gravadas e “denunciados” com a orientação pública e expressa de legisladoras eleitas, não haja uma lista de trabalhadoras/es interditados, sobretudo para a iniciativa privada.

Tudo isso aconteceu apesar dos privilégios que me atravessam: eu sou uma mulher branca, heterossexual, de classe média, com formação acadêmica e que, além de tudo, ocupava um lugar de muito destaque (e de poder) na instituição em que trabalhava. Eu mesma nunca havia me percebido como estando “no lado mais fraco” da corda, aquele onde ela sempre arrebenta. Sobre este ponto, há dois aspectos que precisam ser muito enfatizados para entendermos porque somos, nós mulheres e professoras, a maioria dessa mesa. São aspectos já conhecidos por nós, mas que precisam ser repetidos à exaustão como premissa para nossa ação política e nossa resistência:

Quando uma instituição de ensino superior se deita para a extrema-direita como fez a instituição onde eu trabalhava, ela acaba por revelar seu espírito patriarcal e misógino. Colegas homens, que se posicionam com igual ou maior intensidade e ênfase em suas redes sociais privadas, não só não foram capturados pelas milícias digitais, como também não foram demitidos ou repreendidos pelos seus posicionamentos.Pelo contrário, seus posts públicos, com prints e citações, são usados como parte da defesa da instituição, ou seja, como “prova” de que a minha demissão não teve conotação política uma vez que outros professores também se posicionam, sem sofrerem sanções.

É nesse ponto que meu relato, minha experiência pessoal, alcança sua dimensão coletiva e, nesse sentido, precisamos refletir sobre todas as experiências aqui representadas considerando as estruturas que dão sustentação a essas violências que sofremos. Trata-se de uma estrutura que não se altera facilmente com a vitória de Lula nas eleições e, penso eu, é na direção dessas estruturas que precisamos atuar, agir e organizar a luta e a resistência pelos próximos anos, em especial em Santa Catarina.  

No centro da crise política que vivemos desde 2018, com a ascensão do bolsonarismo está uma crise da confiança na ciência ou, de forma mais geral, uma crise do sistema de peritos, aqueles reconhecidos tradicionalmente como produtores de verdades (a ciência, o jornalismo). A gente viu isso acontecer durante a pandemia, de forma muito evidente. Mas, localmente, essa crise é produzida e fomentada por atores com grande penetração, capacidade de engajamento e competência retórica. Nós temos aqui em SC uma deputada com 1 milhão e 300 mil seguidores no Instagram, que passa o dia produzindo conteúdo anti-escola e anti-feminista em suas redes sociais, tudo como se estivesse respondendo diretamente as suas seguidoras. Ela vive disso, essa é sua agenda política, mas também é o seu negócio, é como ela ganha dinheiro vendendo cursos e livros. Ela insiste em desqualificar os sistemas de ensino (principalmente o público, mas também o privado) por diferentes vieses: questionando a qualidade da educação, pela imposição de uma agenda moral (a suposição da “doutrinação ideológica”, “de gênero”), pelas situações de violência na escola, etc. Hoje mesmo, nesse trágico 27 de março de 2023, essa deputada situou a tragédia na Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, na sua campanha pelo homeschooling, fundamentada sobretudo numa ideia de que a escola não é um espaço saudável e seguro para crianças e adolescentes. É desqualificando as escolas que ela, obviamente, vende seus cursos, colocando-se no centro de uma “alternativa” ao sistema de ensino.  

Minha provocação aqui é compreendermos que essa deputada, assim como o assessor – agora vereador – que liderou aquela ação orquestrada de difamação contra mim -, não é pessoa “louca”, “desvairada” ou “ignorante”. Esses agentes públicos têm método, têm estratégia, que consiste em confrontar uma estrutura forjada na produção do pensamento crítico, no livre pensar, no conhecimento, onde se situam as escolas e as universidades. Essas pessoas só crescem, engajam e reverberam suas ideias em um contexto onde a ciência, a educação, as escolas e as universidades perdem a importância e/ou são desacreditados.  

Complementarmente, há um segundo aspecto a ser considerado: a infraestrutura das redes sociais,que favorece a ascensão de figuras como essa deputada, como o Nikolas Ferreira, como o Monark e como o próprio Bolsonaro. Precisamos ter como premissa que essas plataformas, assim como toda a internet hoje, tem ideologia e tem agência. Inclusive, é urgente entendermos que o bolsonarismo não é somente um fenômeno político. Ele é, como sugere a antropóloga e pesquisadora Letícia Cesarino (2022)[1], um fenômeno técnico, engendrado pela ação política dos artefatos tecnológicos que tem produzido, com o avanço desregulado da plataformização, todos os processos de desinformação, os conspiracionismos e a radicalização política. Ou seja, quando aquele meu tuíte cai na espiral do algoritmo, saindo da minha “bolha” e sendo tomado pela extrema-direita para me atacar e me “cancelar” é porque, em alguma medida, a infraestrutura das redes favoreceu esse processo, com os algoritmo programados para fazer essa mediação.

Documentários recentes como O dilema das redes (2020) e Coded Bias (2020) denunciaram alguns dos efeitos não pretendidos, porém cada vez mais extensivos e descontrolados, do aparato cibernético montado pela indústria tech. Eles fazem um bem-vindo convite para abrirmos as “caixas-pretas” dos algoritmos das grandes plataformas, enfrentando assim nossa profunda alienação técnica com relação a essas infraestruturas. (…) Seus efeitos sociais, além de complexos e até paradoxais, só podem ser visualizados de forma indireta. Consistem, sobretudo, na desestabilização das estruturas que organizavam o ambiente político, científico, legal, midiático durante boa parte do século XX. É nesse sentido que as crises de confiança na democracia, na ciência, na mídia profissional podem ser encaradas como a mesma crise. (CESARINO, 2022, p. 17/18)  

Termino, então, provocando a pensarmos que nossa ação deve reconhecer definitivamente essa não neutralidade das redes sociais para que façamos um uso efetivamente emancipador das tecnologias. Inspiro-me especialmente no pesquisador bieolorusso Evgeny Morozov (2018)[2], que nos convida a pensar “fora da internet” para fazermos um balanço justo e preciso das tecnologias digitais à nossa disposição. Segundo o autor, quando tratamos esses fenômenos como meros produtos “da internet”, estamos tratando a internet como uma “entidade” que paira sobre nós separada do funcionamento da geopolítica do capitalismo financeiro. Definitivamente não é assim. Precisamos nos afastar de uma vez por todas da utopia democrática das redes – essa ideia que, segundo Morozov, compõe uma retórica marketeira do Vale do Silício – para, compreendendo a ideologia das big techs, fazer uma crítica verdadeiramente emancipatória das tecnologias.

Joinville, 27 de março de 2023.

*Doutora em Antropologia Social. Pós-doutoranda no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRGS


[1] CESARINO, Letícia. O Mundo do Avesso: verdade e política na era digital. São Paulo: Ubu Editora, 2022.

[2] MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018.